domingo, 23 de março de 2008

Anorexia nervosa


Denominada nos manuais diagnósticos por anorexia nervosa , a anorexia tem por principal característica o sintoma de recusa alimentar, acarretando sérios problemas de saúde, familiares e sociais, podendo levar à morte. Divulgada em nossos dias como uma doença da moda, sobretudo devido ao fato de os estereótipos sociais concernidos na representação do corpo feminino tomarem a magreza como uma forma a ser cultuada, o corpo anoréxico é o limite mesmo dessa representação. Eis o motivo dessa edição.

O isolamento da anorexia como quadro clínico ocorre, segundo registros da história da psicopatologia, pela primeira vez no século XVII, por Thomas Morton, médico inglês, sob a designação de catexia nervosa. Foi por ele observada, por volta de 1694, em dois adolescentes, respectivamente uma moça e um rapaz, ambos com sinais de emagrecimento exacerbado com grande perda de massa muscular. A moça, então com 18 anos, recusava qualquer alimento e a medicação, acabando por falecer subitamente por falência de seu sistema vital. O rapaz, de 16 anos, apresentava uma grande perda de apetite em função de sua excessiva dedicação aos estudos.

Também célebres são os estudos de Lasègue, em França, que, no século seguinte, adotou o termo Anorexia Histérica para designar o quadro sintomático de uma jovem de 15 anos que, segundo ele, sofria de uma emoção que tentava esconder através de sua recusa progressiva do alimento, chegando a ponto de desenvolver uma perversão mental, cujo traço principal era a manifestação de uma completa indiferença aos apelos dos outros por seu tratamento.

O vínculo entre histeria e anorexia será também observado por Charcot. Em 1885, descreve uma jovem de 13 anos que passa a recusar sistematicamente a ingestão de alimentos sem que isso acarretasse qualquer prejuízo de seu funcionamento gástrico, afastando do quadro um comprometimento orgânico e associando, portanto, a anorexia a um fator mental.

Freud, nos primórdios de seus trabalhos, também relacionou a anorexia à histeria. Uma de suas pacientes manifestou, logo após o seu primeiro parto, uma recusa de comer e, por conseqüência, a impossibilidade de amamentar seu bebê, o que tornou a se repetir com a vinda de seu segundo filho. Isso fez com que Freud
suspeitasse que o sintoma estava associado a um vínculo problemático entre mãe-bebê, que poderia ser equacionado pela equivalência entre comer e amamentar. Posteriormente, ao se deparar com outros casos, passou a associar a anorexia com a melancolia e a estabelecer vínculos marcantes entre a anorexia e a sexualidade feminina.

Nesse período, em que se deu o progressivo isolamento e estudo dessa afecção por esses e outros estudiosos, não era a sua incidência numerosa. É, tão somente, no período do século XIX que se dá um significativo registro de casos, o que atesta o aumento de sua incidência e de sua visibilidade social.

À moda do raciocínio de Pinel, que já à sua época relacionava o sintoma de recusa alimentar, sintoma principal do quadro clínico de anorexia, com a dimensão social e cultural do comer, muitas pesquisas contemporâneas, dentre as quais as citadas por Jaggar e Bordo, em publicação recente, e pelo DSM IV têm se debruçado sobre a influência de fatores sócio-culturais como responsáveis pelo desencadeamento de quadros de anorexia. Nelas, demonstram-se como as exigências sócio-culturais em torno de um ideal de corpo magro - o que tem se intensificado cada vez mais nos últimos anos com a progressiva assimilação discursiva das informações científicas divulgadas pela mídia em geral - , se impõem de maneira imperativa levando os sujeitos a se engajarem em dietas das mais diversas e absurdas, o que estaria associado à sua desestabilização alimentar.

A exigência de magreza sendo, em nossa cultura, sobretudo, dirigida às mulheres é o fato usado como explicativo para um dado que se objetiva de forma cada vez mais evidente, qual seja: o de que a anorexia se manifesta , em uma quase totalidade dos casos, em mulheres. As estatísticas oficiais - segundo Crispo, Figueroa e Guelar - chegam a registrar que 95% das consultas cuja queixa principal é a anorexia são feitas por mulheres.

O grotesco da anorexia assume hoje um lugar semelhante àquele ocupado pelo vínculo entre a histeria e o feminino em fins do século XIX e na primeira metade do século XX. Serge André mostra a necessidade de ultrapassar a associação superficial entre feminino e anorexia e a importância de retomar as contribuições de Sigmund Freud sobre o assunto, reatualizando, com isso, a questão, do que ligaria no inconsciente a anorexia à sexualidade feminina.

Paul-Laurent Assoun, ao assinalar no sujeito anoréxico a existência de uma divisão entre o querer e o desejo, indica a necessidade de indagar se a anorexia não seria, por excelência, uma verdadeira síndrome da feminilidade cuja construção responderia a resposta do tornar-se mulher. O falaz emagrecimento da anoréxica seria uma conseqüência do curto-circuito entre a função nutricional e a sexualidade.

Gerard e Judith Miller também atestam existir um vínculo entre a pulsão oral e a sexualidade feminina na anorexia, o qual produziria um esvaziamento da face funcional da pulsão oral, fazendo com que o sujeito anoréxico não coma, mas deseje.

Retomando a tese de Lacan, segundo a qual a anoréxica come "nada", Schneiderman assevera que ela o faz por faltar-lhe apenas o nada. Com isso apresenta, assim, o indício da associação entre a sexualidade e a morte, o qual fica patente no heroísmo do sacrifício da anoréxica em resistir ao apelo para que coma, o que a conduz quase sempre a um quadro melancólico.

A posição sexual feminina

Dentre essas importantes teses, observa-se a insistência em relacionar o sacrifício do desejo com a posição sexual feminina. Consideramos que esse imperativo é muito semelhante aos apelos culturais feitos às mulheres para que elas a adotarem práticas dietéticas, cuja característica é a de bem demarcar sua rapidez e eficácia em produzir resultados que valeriam o sacrifício. Haveria nessa promessa uma recompensa, enquanto que, na anorexia propriamente dita, poderíamos assim perguntar: o que ganharia, então, a anoréxica em desafiar a vida com a sua recusa alimentar? O que parece querer com o querer comer "nada"?

O a-menos do desejo, sob a forma da fome suportada, mostra haver algo de paradoxal na forma como se inscreve o gozo na anorexia, apontando para uma ética de afirmação do desejo. É nessa via que colocamos a importância de aprofundar como se estabelecem as condições da produção do sintoma de recusa alimentar e de como elas poderiam fazer eco às imposições sociais em torno de modelos corporais ou padrões alimentares restritivos. Perguntamo-nos, pois, o que facilitaria, do ponto de vista do gozo feminino, esse tipo de escolha sintomática e, em contrapartida, o que dificultaria o gozo masculino de dela fazer também uso? A relevânciado conhecimento do nexo entre o suficiente e o estrutural na irrupção da anorexia, como exposição de um gozo paradoxal que desafia a morte, é sem dúvida, essencial para o vislumbre de dados que ajudem a superar as imensas dificuldades no tratamento de casos de anorexia , principalmente se considerarmos, com Crispo, Figueroa e Guelar, que deles de 3% a 10% resultam em morte.
DN

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domingo, 23 de março de 2008 às 10:14:00 AM |  

Denominada nos manuais diagnósticos por anorexia nervosa , a anorexia tem por principal característica o sintoma de recusa alimentar, acarretando sérios problemas de saúde, familiares e sociais, podendo levar à morte. Divulgada em nossos dias como uma doença da moda, sobretudo devido ao fato de os estereótipos sociais concernidos na representação do corpo feminino tomarem a magreza como uma forma a ser cultuada, o corpo anoréxico é o limite mesmo dessa representação. Eis o motivo dessa edição.

O isolamento da anorexia como quadro clínico ocorre, segundo registros da história da psicopatologia, pela primeira vez no século XVII, por Thomas Morton, médico inglês, sob a designação de catexia nervosa. Foi por ele observada, por volta de 1694, em dois adolescentes, respectivamente uma moça e um rapaz, ambos com sinais de emagrecimento exacerbado com grande perda de massa muscular. A moça, então com 18 anos, recusava qualquer alimento e a medicação, acabando por falecer subitamente por falência de seu sistema vital. O rapaz, de 16 anos, apresentava uma grande perda de apetite em função de sua excessiva dedicação aos estudos.

Também célebres são os estudos de Lasègue, em França, que, no século seguinte, adotou o termo Anorexia Histérica para designar o quadro sintomático de uma jovem de 15 anos que, segundo ele, sofria de uma emoção que tentava esconder através de sua recusa progressiva do alimento, chegando a ponto de desenvolver uma perversão mental, cujo traço principal era a manifestação de uma completa indiferença aos apelos dos outros por seu tratamento.

O vínculo entre histeria e anorexia será também observado por Charcot. Em 1885, descreve uma jovem de 13 anos que passa a recusar sistematicamente a ingestão de alimentos sem que isso acarretasse qualquer prejuízo de seu funcionamento gástrico, afastando do quadro um comprometimento orgânico e associando, portanto, a anorexia a um fator mental.

Freud, nos primórdios de seus trabalhos, também relacionou a anorexia à histeria. Uma de suas pacientes manifestou, logo após o seu primeiro parto, uma recusa de comer e, por conseqüência, a impossibilidade de amamentar seu bebê, o que tornou a se repetir com a vinda de seu segundo filho. Isso fez com que Freud
suspeitasse que o sintoma estava associado a um vínculo problemático entre mãe-bebê, que poderia ser equacionado pela equivalência entre comer e amamentar. Posteriormente, ao se deparar com outros casos, passou a associar a anorexia com a melancolia e a estabelecer vínculos marcantes entre a anorexia e a sexualidade feminina.

Nesse período, em que se deu o progressivo isolamento e estudo dessa afecção por esses e outros estudiosos, não era a sua incidência numerosa. É, tão somente, no período do século XIX que se dá um significativo registro de casos, o que atesta o aumento de sua incidência e de sua visibilidade social.

À moda do raciocínio de Pinel, que já à sua época relacionava o sintoma de recusa alimentar, sintoma principal do quadro clínico de anorexia, com a dimensão social e cultural do comer, muitas pesquisas contemporâneas, dentre as quais as citadas por Jaggar e Bordo, em publicação recente, e pelo DSM IV têm se debruçado sobre a influência de fatores sócio-culturais como responsáveis pelo desencadeamento de quadros de anorexia. Nelas, demonstram-se como as exigências sócio-culturais em torno de um ideal de corpo magro - o que tem se intensificado cada vez mais nos últimos anos com a progressiva assimilação discursiva das informações científicas divulgadas pela mídia em geral - , se impõem de maneira imperativa levando os sujeitos a se engajarem em dietas das mais diversas e absurdas, o que estaria associado à sua desestabilização alimentar.

A exigência de magreza sendo, em nossa cultura, sobretudo, dirigida às mulheres é o fato usado como explicativo para um dado que se objetiva de forma cada vez mais evidente, qual seja: o de que a anorexia se manifesta , em uma quase totalidade dos casos, em mulheres. As estatísticas oficiais - segundo Crispo, Figueroa e Guelar - chegam a registrar que 95% das consultas cuja queixa principal é a anorexia são feitas por mulheres.

O grotesco da anorexia assume hoje um lugar semelhante àquele ocupado pelo vínculo entre a histeria e o feminino em fins do século XIX e na primeira metade do século XX. Serge André mostra a necessidade de ultrapassar a associação superficial entre feminino e anorexia e a importância de retomar as contribuições de Sigmund Freud sobre o assunto, reatualizando, com isso, a questão, do que ligaria no inconsciente a anorexia à sexualidade feminina.

Paul-Laurent Assoun, ao assinalar no sujeito anoréxico a existência de uma divisão entre o querer e o desejo, indica a necessidade de indagar se a anorexia não seria, por excelência, uma verdadeira síndrome da feminilidade cuja construção responderia a resposta do tornar-se mulher. O falaz emagrecimento da anoréxica seria uma conseqüência do curto-circuito entre a função nutricional e a sexualidade.

Gerard e Judith Miller também atestam existir um vínculo entre a pulsão oral e a sexualidade feminina na anorexia, o qual produziria um esvaziamento da face funcional da pulsão oral, fazendo com que o sujeito anoréxico não coma, mas deseje.

Retomando a tese de Lacan, segundo a qual a anoréxica come "nada", Schneiderman assevera que ela o faz por faltar-lhe apenas o nada. Com isso apresenta, assim, o indício da associação entre a sexualidade e a morte, o qual fica patente no heroísmo do sacrifício da anoréxica em resistir ao apelo para que coma, o que a conduz quase sempre a um quadro melancólico.

A posição sexual feminina

Dentre essas importantes teses, observa-se a insistência em relacionar o sacrifício do desejo com a posição sexual feminina. Consideramos que esse imperativo é muito semelhante aos apelos culturais feitos às mulheres para que elas a adotarem práticas dietéticas, cuja característica é a de bem demarcar sua rapidez e eficácia em produzir resultados que valeriam o sacrifício. Haveria nessa promessa uma recompensa, enquanto que, na anorexia propriamente dita, poderíamos assim perguntar: o que ganharia, então, a anoréxica em desafiar a vida com a sua recusa alimentar? O que parece querer com o querer comer "nada"?

O a-menos do desejo, sob a forma da fome suportada, mostra haver algo de paradoxal na forma como se inscreve o gozo na anorexia, apontando para uma ética de afirmação do desejo. É nessa via que colocamos a importância de aprofundar como se estabelecem as condições da produção do sintoma de recusa alimentar e de como elas poderiam fazer eco às imposições sociais em torno de modelos corporais ou padrões alimentares restritivos. Perguntamo-nos, pois, o que facilitaria, do ponto de vista do gozo feminino, esse tipo de escolha sintomática e, em contrapartida, o que dificultaria o gozo masculino de dela fazer também uso? A relevânciado conhecimento do nexo entre o suficiente e o estrutural na irrupção da anorexia, como exposição de um gozo paradoxal que desafia a morte, é sem dúvida, essencial para o vislumbre de dados que ajudem a superar as imensas dificuldades no tratamento de casos de anorexia , principalmente se considerarmos, com Crispo, Figueroa e Guelar, que deles de 3% a 10% resultam em morte.
DN
Postado por Igor Viana Marcadores:

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