Analisando friamente, Amy Winehouse era uma artista de carreira modesta. Sim, modesta. Não fique indignado (ou indignada) com essa afirmação – não se trata de uma crítica nem de um comentário maldoso: é apenas uma constatação. Ao longo de sua carreira, ela nos presenteou com não mais do que dois álbuns, e um punhado de shows – se é que as pessoas que foram conferir suas performances mais recentes (incluindo essas do começo do ano pelo Brasil) podem classificar aqueles espetáculos desconcertantes como “shows”. Ofereceu também um bocado de confusão, mas vamos falar disso daqui a pouco para não perder o foco.
Pense nos outros grandes nomes da música que também deixaram seus fãs de uma maneira abrupta – ou estúpida, se você preferir. Jimi Hendrix – três álbuns de estúdio lançados em vida e uma série de concertos memoráveis (eu diria até históricos). O mesmo vale para a prolífica Janis Joplin. Kurt Cobain? Oficialmente só três de estúdio (mais alguns preciosos com gravações ao vivo) –, mas deixou também uma série de turnês incríveis, com shows que, apesar de quase sempre muito além do limite da sobriedade (qualquer pessoa que estava na mesmo noite de 1993 que eu, em São Paulo, quando ele, displicente e propositalmente, abria a calça para as câmeras que captavam o show para a TV aberta sabe do que eu estou falando), são registros memoráveis. O mesmo vale para Cássia Eller – guardadas as proporções da sua importância no cenário musical brasileiro, em comparação com os outros artistas citados. Antes de tudo, ela era um furacão no palco – com o perdão do clichê –, e não apenas em uma performance, mas em absolutamente todas! E não preciso aqui nem enumerar seu discos, parcerias, colaborações e outros improvisos mirabolantes. Quando digo que a carreira de Amy era modesta, estou fazendo esse tipo de comparação.
E é baseado nessa avaliação, que pergunto por que nos comovemos tanto com a morte de Amy?
“Comover”, talvez, não seja o melhor verbo para usar… O que quero entender é o barulho que sua ausência vem provocando desde sábado. Mas talvez “barulho” não seja a palavra ideal. Quem sabe se eu colocar assim: Por que nos importamos tanto com o desaparecimento de uma cantora que brilhou por tão pouco tempo no nosso imaginário? Você, tenho certeza, sabe de que inquietação estou falando…
Soube da morte de Amy Winehouse de uma maneira inesperada. Eu estava em Curitiba, na hora do almoço de sábado, descansando um pouco depois de uma manhã bastante intensa – quando conseguimos levar mais de 5 mil pessoas para caminhar conosco naquele desdobramento do projeto “Medida Certa”, que fizemos no “Fantástico”. Fazia hora para pegar o avião de volta ao Rio, quando uma colega da produção me ligou pedindo ideias para fazer alguma matéria sobre Amy Winehouse. Só isso. Minha primeira pergunta – quase que por reflexo – foi logo: “Ela morreu”?
Veja bem: em se tratando de uma artista popular como ela, eu poderia esperar qualquer tipo de notícia. Ela poderia ter anunciado que viria ao Rock in Rio, por exemplo. Ou quem sabe teria dado outro vexame federal numa apresentação numa pequena ex-república soviética. Dada a expectativa em torno de um novo disco seu, quem sabe algum material inédito tivesse vazado na internet… Ou quem sabe – como eu sou sempre otimista – ela tinha convocado uma grande entrevista coletiva para comunicar ao mundo que estava “limpa” – livre das bebidas e das drogas! Tudo isso era possível – e mereceria, talvez, uma menção no programa que apresento. Mas minha reação imediata foi supor que ela havia morrido. E – nem precisaria acrescentar – de uma complicação relacionada às bebidas e às drogas. Essa, muito provavelmente foi a sua reação também, quando alguém te perguntou (ou mandou uma mensagem de texto, ou te “tuitou”): “Você viu a Amy Winehouse?”.
É como se as pessoas – todos, inclusive eu e você – estivéssemos esperando isso dela. Sua morte “trágica” (aposto que esse adjetivo está sendo mais usado para descrever o que aconteceu com Amy do que “inesperada”) fosse apenas uma questão de tempo – um mero ponto final de um processo inevitável que ela já havia anunciando em episódios cada vez mais repetitivos, alardeados como crônicas bizarras pela imprensa. Sendo até um pouco atrevido, não duvido que houvesse até que torcesse secretamente para que isso acontecesse – pelos motivos mais confusos, desde a necessidade de preservar sua obra intacta (antes que ela começasse a oferecer discos medíocres em uma suposta carreira decadente), até pela mórbida obsessão de poder ler um obituário brilhante sobre uma artista que deixa o mundo no auge da sua carreira.
Bem, para aqueles que imaginavam (veladamente ou não), que sua morte traria um inevitável circo de mídia – bravo! Nas últimas 48 horas você tem um bom punhado de evidências de que foi isso mesmo que aconteceu (inclusive no próprio “Fantástico”). E foi vendo justamente esse “espetáculo” que eu comecei a me perguntar qual era o sentido de tudo aquilo. Por que a reação à morte de Amy foi tão histérica?
Uma hora depois de que soube do acontecido, eu já estava num frenesi de mensagens de texto, voz, ligações – e até whatsapp! Nacos de informação (a maioria deles distorcidos ou simplesmente “chutados”) ricocheteavam no meu celular com a velocidade quântica. E se alguém achava (como eu) que aquilo seria apenas uma reação inicial… O mesmo frege continuou por todo o fim de semana – e refletiu, inevitavelmente também, no interesse das pessoas em ver o “Fantástico” de ontem à noite. O que estava acontecendo?
Bem, a explicação mais fácil é uma que já foi discutida de várias maneiras aqui mesmo neste espaço – a de que as pessoas, de tempos em tempos, precisam de uma catarse coletiva. Nós gostamos de nos sentir “juntos” de todo mundo, dividindo um mesmo sentimento, seja ele o luto (Michael Jackson), a solidariedade (tsunamis, deslizamentos, enchentes), euforia (Copa do Mundo), ou mesmo uma falsa indignação (lembra da história de Ronaldo “Fenômeno” e um travesti?). Na morte súbita – porém, insisto, não inesperada – de Amy, tínhamos mais um conjunto de fatores perfeitos para que voltássemos a viver essa experiência. Ou “melhor”, dessa vez, foi possível compartilhar não apenas o luto, como também a falsa indignação (“aquela transgressora, mergulhada em álcool e drogas – viu o que aconteceu?”). Uma, digamos, “tempestade perfeita”.
Contudo, eu percebia que o sentimento que estava se espalhando não era exatamente genuíno. Diferente, por exemplo, da catarse provocada pela morte de Michael Jackson – um “evento” aliás, de proporções inigualáveis no mundo do pop -, o que as pessoas pareciam querer dividir não era um sentimento, mas apenas 140 caracteres (se tanto) de alarde duvidoso… O “barulho” que a morte de Amy Winehouse provocou, infelizmente, tinha muito pouco a ver com a sua arte – e seu inegável talento –, e quase nada a ver com uma ligação genuína que as pessoas tinham por ela. Não estou exatamente duvidando daqueles que realmente sofreram com a perda – que são, calculo, uma pequena fração dos que se manifestaram nesses dois últimos dias. Mas não posso deixar de questionar como sua morte teria repercutido se não vivêssemos uma era tão conectada. O que seria muito bom se essas conexões não fossem vazias…
Em muitas manchetes, mensagens, “twitts”, comentários, o que se via era um eco surdo de vozes que misturavam desinformações, clichês, pieguice, elogios – e até mesmo a tentativa de ser engraçadinho (uma fraqueza da qual eu mesmo fui vítima quando, no sábado, enquanto comentava sobre Amy na Globo News, sugeri que a causa de sua morte só seria uma surpresa se o laudo constatasse uma overdose de chá de camomila…). Mas onde estava o verdadeiro reconhecimento de uma das artistas mais poderosas e enlouquecidas do nosso tempo?
Como escrevi logo no início, a carreira de Amy foi relativamente curta – ainda mais se comparada a outros ídolos da música que partiram em circunstâncias parecidas e são venerados (e velados) até hoje. Mas a reação à notícia de sua morte foi tão grande que eu arriscaria até a dizer que foi desproporcional com relação ao seu legado – a não ser pelo fato de que… ela merecia tudo isso. Parece confuso? Explico.
Como qualquer pessoa que gosta de música como eu já percebeu, minha cutucada sobre a brevidade da carreira de Amy não passa de uma provocação. Quando um artista é revolucionário, não importa se ele ou ela deixou um, dois, três, vinte discos – ou vinte livros, trinta peças, quarenta filmes, cem quadros (pense em Baudelaire, James Dean, Mamonas Assassinas, Sid Vicious, Hélio Oiticica, Yves Klein, Noel Rosa). O que devemos sempre lamentar é o fato de que ele ou ela nos deixou com a promessa de que muitos outros trabalhos interessantes poderiam ser produzidos.
Amy deveria sim ter recebido todas essas homenagens que recebeu – e as que ainda receberá! Centenas de cantoras, músicos, artistas e “performers” vão beber por gerações na sua fonte – e com certeza sonham em um dia poder criar (ou mesmo superar) o sacode que ela deu no mundo do pop. Mas será que todo mundo que soltou um comentário tolo sobre sua morte reconhece esse talento artístico – esse legado? Creio que não… mas espero quem sim!
Justamente pela enorme poeira que se levantou – e que ainda está baixando –, só vamos entender daqui a algum tempo o registro que Amy Winehouse e sua música vai deixar na nossa memória. Eu, por aqui, torço sempre para que a música vença, e para que todo esse “ruído” em torno de sua vida, sua decadência, seu instinto autodestrutivo, seu “mau exemplo” – e até mesmo a ridícula “glamurização” disso tudo –, não vá além do oportunismo imediato de quem quer chamar atenção por alguns segundos (e pegar carona no brilho dos outros…).
Fico com suas músicas, com sua triste aparição nos palcos brasileiros, com as entranhas expostas nas letras de suas canções, com a possibilidade de salvação pela arte que todo seu trabalho sugere. Os “gritinhos histéricos” daqui a pouco vão embora e vamos ouvir Amy cada vez com mais atenção – e reverência. É até bem provável que vejamos, ainda este ano, um álbum seu cheio de material inédito – e, quem sabe, surpreendente. Mas mesmo que essas faixas nunca apareçam (o que é quase impossível quando a gente pensa nas forças de marketing que movem tudo hoje em dia – preciso novamente citar Michael Jackson?), ou mesmo que elas venham e estejam aquém de tudo que ela já nos ofereceu, a lembrança que vai ficar é de uma artista maior.
E que, ainda que de uma maneira involuntária, viveu seus dias finais exatamente como o “último desejo” que cantava no refrão de seu maior sucesso: “not going back to rehab”…
O refrão nosso de cada dia
“More more more”, Carmel – para celebrar uma cantora como Amy Winehouse, vou convocar um outra voz poderosa – que por razões que o próprio pop reconhece, nunca teve o reconhecimento que merecia. Carmel é uma inglesa que fez algum sucesso em meados dos anos 80 (sua capa na extinta revista influente “The Face” é uma das imagens icônicas daquela década) – mas um sucesso moderado. Vivo torcendo para que alguém a redescubra – quem sabe este não é o momento? O repertório de Carmel não ficaria muito fora de tom na interpretação da própria Amy – e por isso fiz essa escolha. Especialmente da música (entre tantas ótimas que Carmel gravou), que é bem para cima, para celebrar uma artista que nos deixou, mas de quem sempre a gente vai querer “mais mais mais”. Viva Amy! (e viva Carmel!)
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